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#59

Rio de Janeiro, 12 de outubro de 2010

Carlos,

Te escrevo hoje porque se aproxima o dia do mestre. Esse ano, ele cai numa sexta-feira. Feriado prolongado, eu (quase) sempre dava um jeito de fugir do trabalho e embarcar com você em algum tipo de aventura. Você sabe porque eu disse 'quase', não sabe? Você se lembra... Eu lembro.

Mas hoje, ao acordar, ouvi um burburinho de crianças entrando pela janela. Tentei entender se era sábado ou domingo e porque haveria de ter tantas crianças na rua a uma hora dessas. Mal sabia que horas eram, mas a essa altura da vida, qualquer hora é má hora para o som das crianças. Tentei olhar o calendário que fica na parede do banheiro, mas percebi que ele era de dois anos atrás. Não sei se foi o sono, mas fiquei um tempo pensando na possibilidade de tudo isso ser um sonho. De não ter, de fato, vivido os últimos dois anos. De ter adormecido na cama, e acordado meio atordoada depois de um pesadelo.

Corri para abrir os armários, procurei por suas roupas e, quando finalmente acordei, percebi que minhas próprias roupas estavam espalhadas pelo chão do quarto. De seu, só a minha dor. Não havia sequer uma camisa de dormir pra me lembrar teu cheiro. Deitei por cima das roupas. Quis dormir de novo, mas o burburinho havia aumentado.

Levantei, tomei um banho. Desses que a gente toma quando volta de cemitério. Como se a água pudesse afastar os maus espíritos e o sabão limpar minha alma. Durante o banho lembrei da última carta. Percebi que deveria ser perto de outubro e, pelo burburinho das crianças e as buzinas, só podia ser dia 12. Fiz uma coisa que não faço habitualmente. Liguei pra Alice. 

Conversei com ela por alguns minutos, mas não lembro bem sobre o que falamos. Sabe aquela sensação de que as palavras se perdem no vácuo?  Como se eu fosse incapaz de entender aquelas trivialidades. Ela me confirmou que hoje era dia das crianças e que pretendia ir com o Matheus a algum lugar, acho que a praia e inclusive me chamou pra ir. Recusei, claro. Precisava te escrever.

E te escrevo debruçada por cima de minhas roupas velhas. Roupas que vesti com você. Nesse momento, estou agarrada ao cachecol violeta que você me deu, quase como se ele guardasse seu cheiro por dentro dos fios de lã. Como sinto falta do teu cheiro. Como sinto falta de estar viva.

Olívia.

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#77

Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 2011

Carlos,

Eu gosto do seu nome. Vez por outra fico repetindo seu nome, de frente pro espelho, atenta aos meus lábios. Repito vagarosamente, quase saboreando cada movimento. Quando a boca se abre e se fecha em duas sílabas tão simples que formam um nome tão comum... Às vezes me pergunto como alguém de nome Carlos poderia descompassar minha vida e mudar a rotação do meu mundo. Como alguém de nome Carlos me fez parar em um pedaço de tempo, agarrada em uns poucos trapos velhos de espaço. Como alguém de nome Carlos tem o poder de me fazer enlouquecer.

Esses dias procurei o significado de seu nome. Lavrador. Não sei se é muito confiável, mas... vá lá. Lavrador. Esbocei um sorriso. Tentei repetir a palavra de frente pro espelho, mas parei e vi meus olhos. Fiquei um tempo olhando para os meus olhos. Você já fez isso? Era estranho olhar para o que me olha e ver o que vi. Meus olhos não são mais os mesmos. Cheguei a tocá-los para ter certeza de que eram mesmo meus, mas até agora ainda não tenho certeza. Não tenho certeza se esses olhos são meus ou se os olhos dos quais me lembro nunca  foram da forma como via.

Não sou mais bonita, Carlos. Nem quando falo seu nome. Nem quando falo vagarosamente o seu nome. Meus olhos ganharam um tom meio cinza e a pele em volta deles não tem mais o mesmo viço. Viço... Jamais pensei que escreveria essa palavra em uma carta, mas também, jamais pensei que pudesse escrever tantas cartas. Viço me lembra a minha avó. Cartas também me lembram dela. Não serei como ela, não tenho sua força.

Carlos, Carlos... o Natal está chegando. Não consigo deixar de lembrar de nossos Natais em família, em volta da árvore. Até as brigas do seu pai com o meu pai sobre futebol me deixam nostálgica. Daria qualquer coisa pra voltar àquele Natal em que você derramou o vinho no meu vestido branco e eu fiquei sem falar com você até o ano novo. Eu teria feito diferente. Acho que tenho me deixado contagiar com a melancolia das luzes de Natal. Não gosto de sair de casa nessa época. Se bem que, em que época gosto de sair de casa? Até as consultas que realizo na Estrada da Gávea toda quarta-feira me são exaustivas. Ainda não entendo porque as pessoas não respeitam o fato do mundo não fazer mais sentido pra mim. Se eu não tenho vontade de viver e se essa vontade se arrasta por anos, devo eu continuar vivendo? Chamaram-me egoísta, mas será que sou eu mesma a egoísta?

Essa época do ano me enjoa. E eu sinto vontade de dormir um sono profundo. Não gosto de encarar a piedade nos olhos dos outros. Mal consigo encarar meus próprios olhos. Olhos me desconcertam. E eu estou cansada.

Feliz Natal.

Olívia

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#17

São Paulo, 09 de maio de 2006

Carlos,

Você ainda está bravo comigo? Desculpa não poder estar aí para o nosso aniversário de namoro, eu sei que disse que estaria, mas as coisas ficaram complicadas por aqui. A campanha não foi aprovada, foi preciso fazer alguns ajustes e eu não teria tempo se voltasse para casa.

Eu vi que você me ligou, mas achei melhor não atender. A gente sempre briga nessas horas e, sinceramente não estou com cabeça para brigar. Eu só queria que você entendesse que, se estou trabalhando muito, é justamente pensando em nós dois. Eu te amo, você sabe disso, mas se você pudesse mudar um pouco... Você acha que eu não gostaria de pensar que tudo se acerta uma hora ou outra? Minha vida, no entanto, nunca foi assim, eu sempre tive de correr atrás de tudo o que eu quis e, se hoje eu cheguei onde estou, foi às custas de muito esforço. Não poderia largar tudo para viver uma fantasia.

E, não, isso não é falta de amor como você sempre diz, ao contrário. Eu realmente acredito que você logo enjoaria de mim se eu abrisse mão da minha vida pra viver a vida que você escolheu. Eu não estou sendo egoísta, você vive dizendo que eu deveria ceder mais, mas eu também acho que você deva ceder. Por que sempre tem de ser eu?

Eu sei que é difícil conciliar sonhos diferentes quando se vive a dois, mas acho que quando um abre mão de seus próprios sonhos para viver exclusivamente para o outro, ele abandona um pedaço de si e acaba se tornando outra pessoa. Não quero ser outra pessoa. Quero continuar sendo a pessoa que você conheceu, por quem se apaixonou. Quero ser a pessoa que te faz rir às seis da manhã quando te acorda e não uma esposa frustrada procurando receitas de salmão ao molho de maracujá na internet.

Hoje fazemos seis anos de namoro. Sim, deveríamos estar comemorando, mas eu não estar no Rio não é o fim do mundo. Te ofereci todas as alternativas possíveis. Pedi para você vir para São Paulo, mas você não quis... Sinceramente não sei mais o que fazer. Afinal, é só uma data. Não deveríamos comemorar todos os dias pelo simples fato de estarmos juntos? Não estou sendo canastrona ao afirmar isso, só pelo fato de, teoricamente, o erro ter sido meu. Eu penso mesmo assim. Sou grata todos os dias por te ter ao meu lado e não sei o que seria da minha vida sem você.

Eu te amo, acredite.

Olívia

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#31

Rio de Janeiro, 27 de setembro de 2009

Carlos,

Já passa das três da manhã e não consigo dormir. Estou tentando não abusar dos comprimidos, mesmo porque, quando os tomo, tenho que me abster do vinho... mas nessa noite, de insônia insistente, já tomei dois, com duas taças de vinho e continuo aqui.

Pensei em escrever pra ti. Às vezes sinto como se meu coração estivesse se afogando, imerso em sentimentos densos que não o permitem bater e bombear o sangue. Estou apática desde a sua partida. Acho que é essa a palavra. Lembro, como se fosse hoje, de você arrumando as malas enquanto eu estava sentada na cama, folheando uma revista dessas que tem mais fotos que textos. Sem achar que você seria capaz. Não lembrava quantas vezes havia presenciado a mesma cena: Você, dobrando suas roupas, colocando dentro de uma sacola de viagem. Nós dois mudos, esperando o momento em que começaríamos a chorar e faríamos as pazes na cama, como era de praxe.

Naquele dia, ninguém chorou. Talvez por ser uma noite de verão. Dias de verão não são muito melancólicas. Confesso que, enquanto você arrumava as malas, eu planejava a viagem para o fim de semana seguinte. Não chorei. Sabia que era mais uma guerra psicológica para saber quem cedia primeiro, quem demonstraria fraqueza e eu não fui fraca. Permaneci inerte, folheando a revista e até me interessei por um sapato, pensei que poderia usá-lo no final de semana. Cheguei a comprar o sapato enquanto conferia se havia uma ligação sua no dia seguinte. Nada.

As horas foram passando e não havia nenhuma ligação sua. Cheguei a ligar para mim mesma para saber se meu celular não estava com defeito. Desde que havia te conhecido, nunca passei um dia sem falar com você e, quando finalmente completou o ciclo das vinte e quatro horas, percebi que alguma coisa estava errada. Que era minha vez de dar o braço a torcer. Lembro que liguei para o seu celular algumas centenas de vezes, perdi a conta de quantas, sempre desligado. Liguei para sua casa, seus amigos, sua mãe... Ninguém sabia de você. A preocupação virou desespero e, quando dei por mim, entrei em estado de choque.

Não conseguia falar, comer, dormir, expressar qualquer reação... O telefone tocou lá pelas tantas e senti meu coração disparar, mas não era você. A Fátima queria saber como eu estava, mas eu não poderia falar, nem se eu quisesse. Há sentimentos que apenas o silêncio expressa, outros, no entanto, se confundem e se acumulam tanto que nos dão a nítida sensação de que se não falarmos, eles vão se tornar maiores que nós e, de repente, eu me vi gritando. Um grito visceral, seco, cru.

Nem preciso dizer que a Fátima chegou a minha casa em menos de dez minutos e ainda não entendo como ela fugiu do tráfego intenso da Rua Jardim Botânico àquela hora da tarde, mas ela acabou me levando ao hospital, não esbocei qualquer reação e dormi após uma injeção na veia de diazepan.

Acordar no dia seguinte foi doloroso. Continuava esperando ligações que nunca vinham até que, três dias depois, um e-mail seu com uma frase: estou bem, preciso de um tempo, não me procure.
Poderia dizer que fiquei mais tranquila ao saber que você estava bem, mas a verdade é que eu preferia que estivesses morto. Morto como eu estava, como ainda estou. Acordado às quatro da manhã para me escrever cartas. Cartas que gritam de saudades de ti.

Olívia

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#25

Montes Claros, 03 de setembro de 2008

Carlos,

Estava ansiosa por te escrever. Não estou no Rio, acho importante te avisar. Fico preocupada que tu me procures e não me encontres e fiques preocupado por qualquer motivo. Depois daquele incidente na universidade, minha irmã achou melhor me trazer pra cá e não me deixar mais dirigir. Como se eu fosse sair por aí atropelando as pessoas aleatoriamente. Estou no interior de Minas, em Montes Claros, na casa de uma tia. Não sei se você conhece a cidade, acho que não. Aqui consegue ser mais quente que o Rio. Quente e seco. Não acho que tenha sido uma boa ideia ter vindo. Com esse calor, sinto ainda mais dificuldade de respirar. A Alice diz que é psicológico.

Ela ficou aqui por alguns dias. Saímos, fomos até o clube, almoçamos por lá. A comida é boa. Comi carne. Nem lembro há quanto tempo não comia carne. Foi bom. Nos tempos em que ela esteve aqui, ainda saí para dar umas voltas, mas aqui faz muito calor. Muito calor. Não tenho mais vontade de sair.

Na verdade, tem dias em que me bate uma ansiedade... Meu coração dispara, minhas mãos começam a suar e eu tenho a nítida impressão de estar próxima da morte. Há tanto tempo quero te avisar que estou aqui, mas acho que Alice levou meu celular porque não o encontro em lugar algum. Tentei te ligar do telefone da casa, mas acho que fico meio confusa com os códigos de área e as operadoras de telefone. Alice me liga todos os dias, a noitinha. Às vezes só percebo que chegou a noite quando o telefone toca e tia Amélia me chama.

A tia Amélia é muito simpática comigo, mas, às vezes, posso jurar que há um vislumbre de piedade em seus profundos olhos azuis.Eu não entendo bem. Ela tenta fazer todas as minhas vontades, mas ela não entende que não tenho mais tantas vontades. Queria te escrever, mas não encontrava papel na casa. Não é estranho? Uma casa sem papel. Não há computadores. Já esperava por isso, afinal, tia Amélia não é do tipo que vive conectada, mas não ter papel... Por que diabos não haveria um papel em uma casa?

Ela faz pão de queijo todas as tardes. Pão de queijo em Minas é tão clichê, não é? Mas eu como, pão de queijo com café. Tenho medo de engordar, apesar de minha tia dizer que preciso, mas sabe como é essas pessoas mais antigas, seus padrões são estranhos. Ela diz que estou muito magra, mas, apesar de minhas roupas estarem largas, não acho que estou magra. Tenho medo de engordar muito e, quando voltar, você não gostar mais de mim. Apesar de você ter dito que me amaria de qualquer forma, não quero abusar, ainda mais no meio dessa crise pela qual estamos passando.

Não sei o número daqui, senão te mandaria pra você me ligar. A Alice acha que não devo me preocupar com isso, que você vai ficar bem, mas não consigo me preocupar sem saber como você está. Devo voltar logo para o Rio. Não vou aguentar ficar aqui por muito tempo. Aqui é muito quente. Eu já disse isso, não disse?

Espero que esteja bem.

Olívia.

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#98


Rio de Janeiro, 20 de maio de 2012

Oi, Carlos,

Estou escrevendo porque hoje eu te vi. Juro que vi. Não foi como das outras vezes que achei que tivesse te visto, mas eram só os outros rostos. Não estou mais na fase de querer te ver em qualquer homem. Quase nem sinto tua falta. Não fossem as noites de outono ou as tardes de verão, mal me lembraria de ti.

Mas eu te vi. Sentado em um banco em Copacabana, na altura da Santa Clara, de costas para o mar. Tua bicicleta estava do lado e você parecia falar ao celular. Eu estava do outro lado da rua, mas te reconheci. Teus cabelos estão mais brancos, tua barriga mais saliente, mas ainda lembro do teu peito. Eu nunca esqueceria os pelos do teu peito.

Fiquei ali, do outro lado da rua, te olhando por longos minutos, mas não saberia dizer quantos. Sei que escurecia, mas não era noite. Acho que as nuvens encobriram o sol por alguns momentos. E você ali, sentado, falando ao telefone... Uma cena tão comum e tão fascinante aos meus olhos. 

Confesso que não soube o que sentir quando te vi. Em alguns momentos, queria que você percebesse minha presença, largasse o celular, a bicicleta, atravessasse a Avenida Atlântica como quem tem urgência, me tomasse nos braços e me sufocasse com um beijo intenso e lento misturado com lágrimas de nunca te esqueci. Ao final do beijo, me daria um abraço daqueles em que se sente cada osso do corpo, perderia a fala por alguns momentos e eu poderia sentir o teu cheiro, o cheiro que dorme em minhas narinas. Durante o abraço, eu ouviria teu coração dizer meu nome e não seriam preciso palavras pra demonstrar que eu sou o grande amor da tua vida. Em outros momentos, no entanto, tinha medo que me visse. Sentia meu coração acelerar ao pensar que você poderia me ver, ir em minha direção, gritar comigo, dizer para que eu te deixe em paz, te deixe seguir com tua vida, que eu preciso de um tratamento... Todas aquelas coisas que você já cansou de repetir, anos atrás. Ou pior, notar a minha presença, subir na bicicleta e sumir dali. Como se eu não fosse mais importante. Como se eu já não existisse.

Você não me viu. Tenho certeza que não viu. Terminou sua conversa ao celular e quase senti inveja da pessoa que falava contigo sobre um assunto que eu nem sei qual é. Poderia ser a outra que hoje partilha sua cama, discutindo sobre o que você queria para o jantar. Poderia ser tua mãe, te cobrando uma visita que você sempre posterga. Poderia ser alguém do trabalho falando sobre a escala de férias... Queria poder ouvir tua voz uma vez mais. Teu suspiro, tão característico.

Você não me viu. Desligou o telefone, subiu na bicicleta e seguiu em direção ao Leme. Continuei parada, te vendo partir, de novo. De repente percebi que eu não estava mais ali, parada, naquele lugar. Milhares de cacos de mim estavam pela rua, sendo levados pelo vento. Tratei de lembrar que não lembro mais de ti. Que não sinto mais tua falta. Voltei a sentir meu corpo, mas posso jurar que alguns cacos se perderam. Talvez tenham sido levados a praia. Talvez alguns tenham te seguido até o teu novo lar e nesse momento, estejam repousados em teu peito, inseridos tão perfeitamente em tua pele que não sairão mais. Talvez eu nunca mais seja inteira.

Olívia.

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#23

Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2008

Carlos,

Estou tentando te ligar desde ontem a noite, mas você não me atende. Entendo que esteja chateado comigo, sinceramente não sei o que me deu para ter uma atitude daquelas. Você não merece ser exposto daquela forma, nós não merecemos.

Precisava te escrever essa carta pra te dizer como me sinto e para que, se for possível, tu me perdoes pela atitude impensada. 

Há meses não tenho noticias tuas. E não é de hoje que tento conversar contigo para esclarecer a nossa situação. Sinto que ainda me amas, afinal, um amor assim como o nosso não pode terminar de uma forma tão definitiva, como uma folha que se desprende da árvore e é levada pelo vento para longe dos olhos. Ando preocupada, sem conseguir me concentrar em nada ao redor. Por vezes deito e tardo a dormir, quando vejo, o sol anuncia a manhã com os primeiros raios quentes que me cegam quando ainda estou na cama pensando em ti. Quero saber se andas te alimentando, tomando teus remédios, indo ao médico regularmente, cumprindo teus horários. Preciso saber se andas falando com teus amigos, se ainda falas em mim, se ainda pensas em mim, se ainda sou alguém na tua vida.

Como disse, eu sei que nada justifica o que fiz ontem, mas como diz o poema do Oswaldo Montenegro, "Que a minha loucura seja perdoada, porque metade de mim é amor e a outra metade também". Tu sabes o quanto eu te amo e como tem sido difícil passar os dias sem ouvir tua voz. Me desacostumei da vida sem você e agora, é como se eu não soubesse como andar, como se eu falasse uma língua que as outras pessoas não entendem, como se eu vivesse em uma realidade que não é a minha.

Como tu pensas que pode existir vida sem nós dois se desde que nos vimos pela primeira vez que já não imagino o próximo passo sem que ele seja a teu lado? Como tu pensas que devo voltar aos meus afazeres normais se até quando corto uma cebola pra temperar o macarrão que tu tanto gostavas, lembro de momentos que nunca mais voltarão a ser meus? Como tu pensas que eu poderia manter o controle de pensar que essa tua boca que é minha poderia beijar outra boca ou tua mão acariciar um corpo que não é o meu? Como podes me imaginar dissociada de ti? Como se não fossemos um. Não lembras mais de tuas promessas? Como ousas quebrar a promessa de amor eterno, pactuada nas noites em que passamos juntos nos amando como se não houvesse amanhã?

Se fiz o que fiz, a culpa também é tua e queria que percebesses isso. Mas tu não entendes. Ninguém entende que, se hoje estou nessa situação, a culpa também é tua!

Mas venho aqui para te pedir desculpas, para que não aches que estou louca. Não estou louca, apenas amo loucamente. Amo como se só para o amor nascesse. Amo. Amo. Amo. Amo como nunca amei. Amo como quem nunca mais vai amar ou como pra sempre vai te amar. Amo. Amo. Amo. Entendas isso.Que a minha loucura provem desse amor que tu renegas, desse amor que tu te afastas, desse amor que é tão intenso que mal me permite respirar. Por favor, entenda que eu preciso respirar o teu ar para continuar vivendo.

Pra sempre tua,

Olívia

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#49

Rio de Janeiro, 14 de março de 2010

Carlos,

Ontem foi seu aniversário. Não pense que esqueci. Eu nunca esqueço. Só estive indisposta e não pude me levantar da cama para te escrever. Pensei em te ligar, mas lembrei que você disse para não nos falarmos mais ao telefone, que não te fazia bem e, longe de mim te fazer mal logo no dia do seu aniversário.

Mesmo na cama, pensei o dia todo em você. O que estaria fazendo nesse dia que sempre foi tão importante para nós dois? Lembrei do seu aniversário de 38 anos em que fomos para um chalé em Itaipava. Lembra de como choveu? Passamos muito tempo trancados no quarto, bebendo vinho, ouvindo o crepitar da lareira... Vinícius tocando na nossa antiga vitrola. Dormimos aninhados no tapete de pele de carneiro, envoltos em vários edredons.

Lembro de você me acordando no meio da noite, beijando meu pescoço, sua mão quente tocando meu corpo, da respiração sôfrega, dos arrepios, dos espasmos... Lembro de ter deixado cair o resto de vinho das taças em nossas roupas que já estavam jogadas no lado direito, próximas do pé da cama. Do seu hálito rascante como o vinho que bebemos e da sua barba mal feita que arrepiavam os pelos da minha nuca quando passavam pelas minhas coxas. Lembro do seu gosto de mar, de mel, de fel, do seu gosto de meu.

Do tempo em que passamos suados apenas olhando as fendas da madeira do teto. Era impressionante a nossa comunicação não verbal. Tantos casais passam tanto tempo discutindo e nunca chegam a qualquer conclusão, nós nos entendíamos com um olhar, um toque ou mesmo pela intensidade da respiração. Nos entendíamos como se fossemos um. Como se sempre fossemos só nós dois, completando nossas frases ou verbalizando pensamentos um do outro.

Não foi só a minha alma que sentiu falta da sua, ontem. Senti falta do teu corpo, do teu peito, da forma como teu abraço me engolia. Do cheiro forte do teu suor, dos teus cabelos pretos que já iam ganhando aquele degradê prateado e te davam um ar de homem feito que quase entrava em contraste com teus olhos  castanhos, quase amarelados que revelavam o menino cheio de esperanças e ilusões que você era. 

Ontem, mais que de você, senti falta do amor. Desses amores que enchem os dias de vida e a vida de sentido. Senti falta de mim mesma. Das longas conversas que só faziam sentido pra nós dois, das idas ao cinema para assistir filmes europeus, do café forte que tomávamos nas manhãs de domingo. Senti falta das manhãs de domingo. Quem mais sente falta das manhãs de domingo?

Feliz aniversário,

Olívia

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#68

Rio de Janeiro, 17 de julho de 2011

Oi, Carlos,

Estou escrevendo pra dizer que ainda não estou em casa, mas estou bem. Confesso que estava receosa de vir para esse lugar, mas aqui é agradável, tem muito verde, aquele cheiro de terra molhada, sabe? e me sinto até melhor. A Alice contou que você ligou, que estava preocupado... E eu achando que você nem lembrava de mim. Só não entendo o porquê de você ter ligado pra ela e não pra mim.

Ao contrário do que você possa pensar, não fiz isso para chamar sua atenção. Não vejo a vida como algo tão sagrado assim. Há tempos deixei de acreditar em qualquer força superior, qualquer Deus, que seja. Acredito que devemos viver enquanto há um motivo pra isso e, sinceramente, não vejo mais motivo na minha existência. Tenho conversado com algumas pessoas daqui que insistem em dizer que esse é um pensamento depressivo, mas não acredito que seja. Acredito que todos estão vivendo de uma forma tão alienada que não percebem o quão vazia e dispensável é sua própria vida. Tenho vivido para as cartas... As cartas que te escrevo. Escrevo porque sei que tu me entendes, mesmo sem nunca me responder.

Não é fácil ver a vida dessa forma, eu sei.. Voltaire já dizia que se Deus não existisse, precisaria ser inventado (ou qualquer coisa desse gênero). As pessoas normais precisam de esperança. Acordar todos os dias, repetir as mesmas ações... Dormir para acordar, acordar para dormir e achar que há algum sentido oculto. Estou farta. Não há sentidos ocultos, tu sabes bem. Quero adormecer em um sono profundo e sem sonhos. Meus sonhos não são mais os mesmos e perturbam minhas noites. 

E sabe como eu pensei nisso? Fátima me ligou esses dias. Disse que eu deveria sair, encontrar alguma coisa para ocupar meus dias, mandou eu pensar em qualquer coisa que gosto e eu respondi que gosto de escrever as cartas. Ela disse que isso não basta para uma vida. Quando desliguei, fiquei pensando: Se a única coisa que gosto de fazer não basta... Prefiro adormecer em um sono profundo, envolta em memórias de um passado tão remoto que quase me fazem acreditar em outra vida. Não é possível que eu tenha vivido todas essas memórias... E qualquer cheiro, música ou data, qualquer mínima coisa que as fazem ressurgir de algum canto obscuro e empoeirado de meu cérebro, tentando iluminar com cores vivas e vibrantes esses meus dias cinzas, me causam náusea. Essas cores me cegam, me enjoam. O som das gargalhadas ecoam em meus ouvidos. Tento pará-los, mas é tão difícil...

Talvez os comprimidos que tomei a mais tenha sido uma forma de tentar parar essas memórias. Alias, pra que temos memória? Talvez eu conseguisse ter esperança se não tivesse todas essas memórias que dançam na frente de meus olhos e me mostram que o clímax da minha história já aconteceu.Que agora eu devo encontrar alguma ocupação para matar o tempo enquanto o tempo me mata. Não quero depender do tempo para isso. O tempo... Algumas pessoas superestimam o poder dele. Sempre me disseram que o tempo faria tudo passar, mas não faz. O tempo não cicatrizou minhas feridas. Minha ferida continua aberta, sangrando, pulsante, latejante.  Minha ferida continua tão escancarada que faz com que as outras pessoas tenham pena ao olhar pra mim. 

Você acha mesmo que eu mereço vivendo uma vida medíocre, despertando piedade, se eu posso dormir e deixar nossas memórias?

Olívia

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#8



Rio de Janeiro, 10 de maio de 2004


Amor!

Adorei a surpresa! Sabia que você não esqueceria. A noite de ontem foi fantástica. Obrigada pelas flores e pelo jantar. Como você disse que adora receber cartas minhas, resolvi escrever uma pra dizer o quanto estou feliz por ter você na minha vida.

Ainda me impressiona a forma como tudo aconteceu: tão rápido, tão intenso e tão profundo. Apesar do tempo que já estamos juntos, meu sentimento por você só aumenta. Todas as noites em que você não está aqui, eu me agarro ao travesseiro e adormeço pensando em você. Tenho certeza que posso sentir o seu cheiro, quase como se estivesse impregnado nos meus poros.
Sinto como se o meu corpo e o seu se confundissem, se fundissem, não sei... Mas é como se eu fosse capaz de sentir o seu toque mesmo quando está longe. Brega, não é? Mas, como diria o Pessoa,"Todas as cartas de amor são. Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem"Então, como essa carta é cheia de amor, tem que ser o mais ridícula possível.

Eu sei que nós temos nossos momentos de tempestade, momentos em que parece que nada mais faz sentido, que nosso amor não vale mais a pena. Sei o quanto sou intolerante em determinados momentos, mas, nessas horas, lembro de nossos bons momentos. Do quanto é bom ligar e ouvir sua voz. Do quanto me acalma o teu abraço. Gosto de me aninhar em teus braços e sentir que nada no mundo pode me atingir ou afetar. Sinto como se você fosse meu porto seguro. Quem está comigo quando tudo dá errado. Então, por mais discussões que tivermos – e que casal não as tem – eu quero poder sempre voltar pra você, meu equilíbrio.

Então, hoje, um dia depois de termos completado 4 anos que nos encontramos – e nos reconhecemos – eu só tenho a agradecer a Deus por ter trazido você e a você por dar sentido aos meus dias, por me dar a paz que eu preciso ao acordar e saber que preciso enfrentar mais um dia, mas saber que eu posso voltar pra casa, tomar um banho quente e ouvir o vinil do João Gilberto com você na nossa vitrola. Que outro casal tem uma vitrola nos dias de hoje?! Que outra pessoa pode dizer que encontrou a pessoa certa para partilhar cada momento, grande ou mínimo? Não importa se temos vitórias ou pequenas derrotas, sinto que podemos enfrentar o mundo juntos, de mãos dadas. Trilhamos nosso próprio caminho, com nossas verdades únicas e, com elas, criamos um mundo especial em que podemos nos refugiar.

Você é e sempre será o grande amor da minha vida.

Eu vivo por você e pra você.

Sempre sua,
Olívia

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#39


Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 2009
Olá, Carlos!

Tem recebido as minhas cartas? Não recebo respostas suas.

O ano está terminando. Apesar de tudo, acho que 2009 foi um bom ano. Gosto de anos ímpares. Lembrei agora da sua fascinação pelo número 36. Não sei o porquê, só lembrei.  Passei o Natal em casa. Nunca gostei de Natal, daquelas reuniões familiares. Um das minhas irmãs me ligou, queria que fosse até Curitiba, mas eu não quis. Prefiro ficar aqui, tomando um corton-charlemagne. Passei a me interessar mais por vinhos. Sempre gostei, você sabe.

A Fátima me ligou esses dias, disse que eu devia voltar à terapia. A terapia não funciona bem comigo, como te disse. Não me agrada contar minha vida a uma pessoa que sequer conheço e que recebe para ouvir meus problemas. De qualquer forma, ela me contou que você encontrou um novo amor e, inclusive está planejando ter filhos. Filhos! Veja só! Você que nunca gostou de crianças. Como as coisas mudam, não?
Não consigo te imaginar ainda com outra família, pegando o carro, levando as crianças para o colégio, indo a praia no fim de semana e viajando pra Disney nas férias. Não combina com a imagem que tenho de você, sempre ocupado, lendo seus livros, ouvindo seus discos e fumando seu charuto. Será que parou de fumar charutos? Acho que não combina com essa nova imagem de pai de família. Imagem que criei, é verdade.

Fico pensando que minha vida é uma realidade inventada. Tem um trecho que um livro da Clarice que diz assim: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.” De que livro era mesmo? Água viva? Deve ser... Há tanto não leio Clarice... Mas, como dizia, vivo em uma realidade inventada. Meus pensamentos criam histórias e situações e por vezes nem sei o que foi ou não real. Não é estranho?

Esses dias mesmo liguei pra Alice pra saber como estava o meu sobrinho, o Matheus. Lembra do Matheus? Pois então, eu tinha certeza que ele tinha ficado reprovado na escola e que ela mesma tinha me dito isso. Lembrava com detalhes da ligação, mas ela garantiu que nunca havia me dito que ele ficou reprovado, mas apenas que estava tendo dificuldades com o português. Que ele estava bem, já indo para o quarto ano – não me pergunte o que significa isso, na minha época essas nomenclaturas eram diferentes.

Me senti velha agora, depois de dizer ‘na minha época’. Talvez eu esteja velha. Já reparou que as pessoas não envelhecem ao mesmo tempo? Nesses dias a Alice mesmo veio me visitar. Aquelas reclamações de sempre de que eu devia sair e recontratar a empregada e eu percebi que o tempo estava sendo mais suave com ela. Como se ela estivesse envelhecendo mais lentamente. Você também deve estar envelhecendo mais lentamente.

Ah, feliz ano novo!

Olívia

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#52

Rio de Janeiro, 27 de abril de 2010

Carlos,

Hoje me lembrei de você, mais uma vez. Sai de casa e enquanto fechava a porta olhei para o apartamento, quase que de soslaio percebi que a porta do banheiro estava aberta e a toalha pendurada. Eu detestava aquela toalha pendurada que sempre caía quando eu fechava a porta e você ignorava meus protestos e seguia lendo alguma revista, deitado na cama.

Enquanto girava a chave na fechadura, pude me lembrar da forma como você se deitava para ler: uma mão segurando a revista, outra por baixo da cabeça e a perna esquerda levemente dobrada.

Mas, como dizia... Hoje saí. Me atrevi a dar uma volta pela praia, pra olhar o mar. Dizem que é bom, não dizem? Nunca tive muita paciência para passar longos períodos, parada, contemplando o que quer que seja. Ah, a contemplação não era pra mim. Preferia o barulho ao silêncio, falar a ouvir. Você sabe bem (sim, eu sempre parto do pressuposto de que você ainda se lembra dos meus trejeitos e, às vezes, até fantasio que sinta falta de alguns). Desculpa interromper a narrativa com minhas próprias lembranças ou impressões, mas percebo que, nesse ponto, escrevo mais pra mim que pra você.

Enquanto eu caminhava pelas ruas de Copacabana – e não me pergunte por que escolhi Copacabana – eu percebi o barulho, talvez pela primeira vez. Estive, por tanto tempo, acostumada a essa movimentação, com o barulho que as pessoas fazem ao caminhar, com as conversas em voz alta ao telefone, o motor dos carros... Eu percebi que elas não conseguiam ouvir o barulho que vinha de mim. Fiquei pensando se não sou só eu que ouço o som dos meus cacos batendo. Não que eu quisesse que outras pessoas ouvissem, ao contrário. Senti, inclusive, certa paz de espírito ao perceber que ninguém se importava com minha própria dor.

Confesso que olhava para os rostos das pessoas, com seus sorrisos superficiais, sua pressa habitual e ficava tentando ouvir o som de seus próprios cacos batendo. Era quase uma solidão compartilhada. Talvez eu tenha me mantido reclusa por tanto tempo por pensar que a minha falta estivesse estampada em meu rosto, como uma marca, uma cicatriz que me distinguisse dos demais. Era só ego...

Quase me esqueci da praia olhando as pessoas. Observá-las ainda é melhor que interagir. Ainda não tenho coragem (ou seria vontade?) de interagir. Talvez, a partir de hoje, da primeira parede quebrada, eu consiga quebrar outras, talvez não... Talvez seja só como o sol tímido da manhã chuvosa que volta a se esconder por trás das nuvens.

Há tempos não tenho notícias suas. Espero que estejas bem.

Um abraço,

Olívia

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