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#66

Rio de Janeiro, 10 de julho de 2011

Carlos,

Já não sei que remédio tomar. Antes os remédios rosados me ajudavam a te esquecer. Não esquecer de fato porque eu nunca te esqueci absolutamente, mas ajudavam a acalmar os ânimos da memória e desfaziam um pouco desse nó que trago no estômago. Os remédios brancos, com uma risca no meio, serviam para afrouxar um pouco a corda que laça o meu coração, mas que as vezes laça tão forte que não ele não consegue bater e eu começo a ter problemas para respirar.

Pensei que, como já não fazem efeito, não custa nada parar de tomar todas essas pílulas que me servem de colação entre o café da manhã e o almoço. Quando almoço. Já passei por vários distúrbios alimentares, dizem os médicos. Não sei precisar bem que fase estou vivendo agora. Passou a ansiedade descontada nos doces, principalmente chocolates que Alice me trazia, por vezes escondido. Passou também as horas vomitando no banheiro. Doces nunca me fizeram muito bem. Hoje me satisfaço com meu café preto, sem açúcar. Não há contrastes em meus sabores. Saboreio o café como saboreio a própria vida. Rascante.

Gosto dessa palavra: Rascante. Não tanto quanto do seu nome, mas... Quem há de comparar você com o resto? Não eu. Certamente não eu. Se foi você o grande culpado da minha vida - miserável vida. Tanto dos momentos felizes quanto desses que agora vivo. Dizem que não devo te culpar. Dizem que não devo transferir pra ninguém uma responsabilidade que é minha. Pro inferno com essa responsabilidade. Eu sei que no fundo até você sabe que é o responsável. Quem mandou se aproximar de mim, me ter ao seu lado, fazer juras recheadas de "para sempres" e partir, assim. Batendo a porta como quem vai a feira.

Pro inferno. Pro inferno. Pro inferno. Eu só queria poder desatar esses nós que me prendem. Deitar na minha cama e voltar alguns anos no tempo. Naquele tempo em que construí todas as memórias felizes que me assombram nas madrugadas e nos dias de sol ou de chuva. Naquele tempo em que não haviam cicatrizes tão profundas nem dores tão lacerantes. Quando tudo parecia simples e a morte era o meu maior medo, não maior desejo.

Há dores piores que a morte. Eu nunca acreditei muito nisso, mas agora que sou só pedaços, eu entendo. Quero apenas deitar meus restos em algum canto, qualquer canto. Quero voltar ao pó. Eu já sou pó, Carlos. Eu já não vivo em mim desde aquele fatídico dia. Eu não vivo mais nesses restos. Faça com que eles me deixem ir.

Olívia.

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#32

Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2009

Carlos,

Voltei a trabalhar hoje. As pessoas acham que eu devo retomar a minha vida. Foi estranho chegar ao escritório. Os mesmos rostos, mas não os mesmos olhares. Alice acha que eu estou exagerando, mas eu senti um desconforto. Senti como se todos reparassem em cada movimento meu. Tenho dó daquelas pessoas. Sei que você pode achar que eu sou (mais) louca, que todos devem sentir pena de mim, mas... eu já cheguei ao fundo do poço e daqui eu não caio mais.

Tenho pena deles. Cavam seus próprios buracos. Acordam de manhã, colocam sua máscara, seu salto alto, seu terno com vincos impecáveis, mas suas mãos estão sujas. Garanto que nenhum dali passaria por uma análise mais criteriosa. Nenhum. Duvido que algum seja minimamente feliz.

Fiquei pensando se ainda sofrem com os mesmos problemas.Lembra da Magali? Te falei dela. É secretária do Jorge. Um exemplo da moral e dos bons costumes que me olha com aquele olhar de dó, mas que deixa o marido e as duas filhas para frequentar motéis baratos com o chefe. Todo mundo sabe, todo mundo finge não saber. Tudo é tão hipócrita.

O Carlos Eduardo, aquele que era apaixonado por mim e de quem você até tinha ciúmes, lembra? Nem me olhou. Na verdade, me olhou, mas de soslaio. Quase achei graça. Passei a ser uma mulher que inspirava respeito e admiração pra uma de quem as pessoas sentem dó e até certo medo.

A verdade é que, além da pena que eu mesma nutro por essas pessoas, tem também um pouco de inveja. Fico pensando que se eu fosse uma delas, poderia mudar. No fundo eu sei que de nada adianta pensamentos como esse. Eu já fui uma dessas pessoas e não fiz nada. Talvez, se eu tivesse um exemplo como o meu... Não sei. O problema é que elas olham pra mim e não se enxergam. Elas veem a minha dor, mas não mudam. Como se fossem todos imunes a todos os problemas do mundo.

Não consegui ficar até a hora do almoço. Levantei, peguei minha bolsa e saí. Pensei em dar uma volta pela praia, mas quando me vi, estava dentro do elevador. Me senti segura em casa, quando fechei o trinco. O telefone tocou a tarde inteira, mas não atendi. Certamente não era você, era? Não vou voltar pra aquele lugar. Vou me assumir como alguém quebrado e sem conserto. Não quero mais vestir máscaras, pentear o cabelo e usar roupas pra fingir ser algo que eu não sou.

Eu sou destroços. Destroços de mim. Eu sou o que sobrou de mim mesma. E isso basta.

Olívia.

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#92

Rio de Janeiro, 01 de abril de 2012

Carlos,

Hoje eu fui a casa da Alice. Foi um bom dia. Vimos fotos da infância, relembramos os momentos que passamos no interior. Quase pude sentir o cheiro da terra molhada e de laranja tirada do pé. Não sei dizer ao certo há quanto tempo não me sentia em paz. Talvez faça tanto tempo que eu tenho dificuldades de reconhecer, mas hoje, se eu não senti paz, foi algo que se assemelhou muito.

Não quis dormir lá. Ainda tenho problemas em dormir longe da nossa cama. Longe do seu cheiro que, por mais que digam que não existe mais, eu teimo em sentir entre os nossos lençóis. Pouco antes de abrir a porta, no décimo andar, fiz o mesmo pedido mudo, para que você estivesse ali, me esperando na porta de casa. Pensei que poderíamos conversar, você me daria um abraço e o tempo voltaria a correr. Você não estava e o tempo permanece parado.

Apesar do tempo estar parado desde o dia em que você partiu deste nosso lugar, eu não me sinto mais a mesma.   Não me sinto mais alguém capaz de ter sentimentos profundos. Não me sinto capaz de amar, por exemplo. Sei que você disse que, com o tempo isso passaria, que eu encontraria outra pessoa e todos aqueles clichês de fim de relacionamento. Não sou uma dessas. Aliás, não sou como nenhuma. E digo isso sem qualquer prepotência de quem quer se sentir única e especial porque eu não sou. Me sinto como um pedaço de coisa alguma. Um pedaço.

Talvez essa falta de esperança no que quer que seja, me traga algum conforto. Não vivo mais as exaltações e expectativas a vida. Já não espero que o tempo volte a correr. Estou resignada e a resignação me trouxe  essa nova paz, se não paz, ao menos algo que o valha. Não te desejo mal, por mais que você talvez pense que sim. Não te queria nessa situação em que eu estou porque, sabe... eu te amo. Por mais que pareça que não. Por mais que pareça que tudo isso é só uma obsessão de uma mente atormentada. Por mais que até pra mim mesma isso não pareça muito normal.

É bem verdade, não consigo ou talvez não saiba controlar tudo isso que se passa. Não consigo controlar o que eu sinto, o que penso, meus desejos, talvez nem existam mais desejos em mim, mas apenas essas necessidades. Ou essa necessidade de pensar em você em todos os segundos do meu dia, dos meus dias. É como se a minha vida se resumisse a isso, a pensar em você. Em relembrar as lembranças que eu nunca mais viverei. A sonhar com um futuro que eu nunca mais terei. A continuar sendo sua, mesmo sem jamais ter sido realmente.

Olívia

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#87

Rio de Janeiro,  16 de março de 2012

Carlos,

Me sinto aprisionada nesse pedaço de tempo que não passa. Sei que preciso sair, voltar a superfície e respirar, mas há algo que me puxa pra baixo e me segura pelos pés. Sinto como se não adiantasse me debater. Como se quanto mais eu me debatesse, mais apertado ficasse. Às vezes sinto que tudo o que tenho de fazer é relaxar, fechar os olhos e me deixar ir pro fundo. Descer lentamente. Até quase adormecer nos braços do que me aprisiona.

Aprendi a conviver com a dor, como se convive com uma velha amiga que perdeu a lucidez. Só me resta aprender que essa dor faz parte de mim, mas não me incapacita. Você pensa que eu sou louca, não pensa? Todos pensam... Se eu não fosse eu e fosse outra, provavelmente pensaria também. Uma mulher com 36 anos e que nem faz as unhas... Sabia que eu não faço mais as unhas? São elas que me alimentam em dias em que eu sinto fome de você. Às vezes a fome é tão voraz que meus dedos sangram. Pequenas gotas de sangue salgado. Você tem gosto de sangue salgado.

Esses dias Alice falou comigo que ela e Fátima pensaram em me levar a uma igreja ou a um centro espírita. Chega a ser engraçado como até a mais ateia das pessoas busca solução na fé quando não encontra nada palpável a que se agarrar. Não sou assim. Nem todo o sincretismo religioso dessa terra me faria crer que eu posso adorar algo ou alguém mais do que adoro a ti. Quando disse isso a Alice, ela se assustou. Teve medo que me exorcizassem ou algo assim. Ainda existem exorcismos? Talvez tu sejas um demônio ou talvez seja eu.

Mas... não tenho fé. Nem falo aqui só da fé em algo superior. Falo da fé nas coisas da vida. Não tenho fé. Já não espero melhorar. Já não espero que você volte. Já não espero respostas pra essas cartas mal escritas. Não tenho fé que te amo, nem sequer que te amei um dia. O amor não deveria ser assim, tão sujo, tão porco. O amor deveria fazer as unhas e pentear os cabelos. O amor deveria iluminar os caminhos, não pesar sob minhas costas a ponto de não me deixar dar mais um passo.

Não me vejo mais como essas pessoas que acordam pela manhã, tomam seu café, vão trabalhar. Lembra de como eu me estressava com as coisas do trabalho? Lembra de como tudo aquilo me aborrecia? Esses dias me peguei pensando nisso: Quantas vezes você reclamou dizendo que eu não me preocupava contigo, que só meu trabalho importava pra mim. Hoje eu só me importo contigo, mas tu não estás mais aqui. Irônico. Perturbador. Infeliz. Assim como eu.

Olívia


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#36

Rio de Janeiro, 24 de novembro de 2009

Carlos,

Hoje encontrei minha aliança. Não achei que a tivesse mais, mas também não sei porque achei que não tivesse. Olhando pra ela, agora, ao lado da folha de papel, já não é uma aliança, mas um pedaço de metal sem valor. Pensei em atirá-la pela janela, mas o remorso provavelmente me consumiria por longo tempo. Já bastam meus próprios remorsos, aqueles que cultivo com tanto cuidado. Não, não pense que estou fazendo drama. Não estou. Não quero que sinta pena de mim. Eu só quero que você entenda que esse pedaço de história que hoje está jogado em minha escrivaninha, confunde meus sentimentos.

Lembro do dia em que você me deu, eu abri a caixinha e fiquei sem saber que reação ter. Um misto de terror e surpresa invadiram meu corpo. Fiquei pálida, fria, ao menos você disse que fiquei assim. Não sabia se devia tirar o anel da caixinha e colocá-lo no dedo. Não sabia se deveria responder qualquer coisa. Naquele momento, eu só não queria que a minha vida mudasse; Não é irônico? Quando você partiu, eu também não queria que minha vida mudasse, mas em um sentido tão oposto...

Talvez o problema seja esse. Talvez sejam as mudanças.Não gosto de mudanças. Nunca gostei, mas desde que você partiu, uma mudança é a única coisa pela qual anseio. Poderia me habituar novamente a vida sem você. Afinal, ninguém passa a apenas existir assim em um corpo sem vida só porque terminou um relacionamento - ao menos é o que todos dizem e, apesar de você não falar, é o que eu sei que você também pensa - mas todos os dias, ao acordar, penso que tenho o dia inteiro pra fazer o que eu quiser, mas a única coisa que tenho vontade é de pensar em você.

E as horas vão passando como se não passassem. Como se eu estivesse presa a uma falha do tempo que me deixa nesse lapso sem vim. De repente passou da hora do almoço, da hora do banho. De repente passou da hora. Já é noite. Hora de dormir. E acordar na mesma rotina. A eterna rotina de viver pra lembrar que um dia eu vivi por você. A rotina de viver pra saber que nunca mais viverei por nada ou ninguém. Quantas vezes me peguei pensando no que eu faria se ouvisse o barulho da porta e fosse você virando a chave, entrando, segurando minha mão e dizendo que as coisas se resolveriam. Daí eu olho ao redor, pra esse caos em que se transformaram os meus dias e percebo que você não vai chegar. Eu não vou ouvir nunca mais o som do seu chaveiro batendo na chave, dando duas voltas na fechadura e seu 'Boa noite, amor'. Não há mais amor na noite.

Talvez seja por isso esse apego às pequenas coisas. Ao anel com seu nome gravado, com o símbolo de infinito. Talvez eu devesse ter aprendido que nada é infinito, só essa dor.

Olívia

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#69

Rio  de Janeiro, 22 de julho de 2011

Carlos,

Rasguei a última carta. Nada do que eu escrevia parecia sério. A essa altura, já sinto como se a minha história fosse um grande clichê que não merecesse vida. Cada palavro que traço torta leva embora um pedaço do que eu sou e quão ridículo isso pode ser aos olhos daqueles que nunca sofreram?

Eu sofro, Carlos, mas ninguém entende. Dizem que tenho que seguir com minha vida, que tenho de tomar meus remédios regularmente e pagar minhas contas em dia. Ninguém se importa realmente. Querem apenas que eu continue cumprindo o meu papel na sociedade e quando eu digo que quero que a sociedade se acabe em sua própria lama, me olham como se eu dissesse um absurdo.
Absurdo, Carlos, é viver sem ter motivo. É acordar sem querer levantar e ir dormir com a esperança de que o amanhã nunca chegue.

Voltei para casa. Não queriam me deixar voltar, mas expliquei que me sinto melhor aqui. Que a crise havia passado, que não voltaria a praticar nenhum ato de desespero. Você e eu sabemos que não se trata de um ato de desespero, mas de desesperança. É difícil fazê-los enxergar, então me calo ou, se não calo, finjo concordar. Não achei que fosse capaz de tanta dissimulação, mas precisava voltar aos meus lençóis, os teus lençóis... Aqueles que guardam a lembrança eterna do último sonho que sonhei contigo.

Tive medo. Ao abrir a porta, imaginei que Alice pudesse ter vindo aqui e jogado fora tudo o que restou de ti, mas as coisas ainda estavam em seu lugar. A desordem em seus mínimos detalhes. O porta retratos que fica sobre o aparador da sala, permanecia virado. Por cima dele, uma filha de papel com um número de telefone que não lembro mais de quem é.

Cada pedaço desse apartamento carrega um pouco de ti e, se não posso mesmo partir, quero quedar-me aqui. Ser consumida lentamente por essas memórias, ser devorada por esses sentimentos de cuja beleza já até esqueci. Quero padecer. Quero padecer no que sobrou de ti. Do pouco que restou de ti. Tão pouco tu podes, inclusive, seguir com tua seguir sem eles, enquanto eu, não posso sequer pensar em respirar sem eles.

Ah, essas paredes brancas são como as de um hospício. Além delas não há vida, não há despertar, não há recomeços. Dentro delas também não. Essas paredes encerram em si toda a esperança porque não há esperança longe de ti, Carlos.

Se pudesse fazer um último pedido: Que me permitam escrever pra ti até que a última gota de sofrimento transborde em meu coração já ferido e que essa onda de dor que se espalha por meu corpo faça com que eu sinta o arrepio derradeiro na certeza de que vou pra um lugar distante, um lugar em que eu não precise existir.

Olívia

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#71

Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2011

Olá, Carlos,

Sou eu, novamente. Sou eu. E você sabe. O mesmo papel, a mesma letra. Essa sou eu. Essas letras garranchadas. Te escrevi tantas vezes com pressa como quem quer expurgar um pecado, tantas vezes com dor, tantas vezes me demorando em cada palavra, como se enquanto eu escrevesse pudesse sentir a brisa da sua respiração na minha nuca. Te escrevi tantas vezes... Resposta, nenhuma.

Talvez eu devesse parar de te enviar essas cartas inúteis que certamente nem chegam ao teu endereço ou, se chegam, são rasgadas antes de serem abertas, mas não paro porque elas já fazem parte de minha rotina. Hoje fiquei pensando em um motivo para te escrever. Não tem. Pensei em comentar que Getúlio Vargas morreu há 57 anos, mas 57 anos não é sequer uma data fechada, dessas que são lembradas. Como se as memórias precisassem ser reacesas a cada dez ou cem anos. Se eu só me lembrasse de você a cada dez ou cem anos...

Pensei também em comentar sobre política. Pedir sua opinião sobre os fatos recentes, mas eu não leio mais os jornais, acho que minha TV nem funciona mais. Então, não tenho nada de novo pra compartilhar. Apenas a minha dor que já é velha conhecida. É aquela dor que senta ao meu lado na mesinha de café, me deseja um bom dia, mesmo sabendo que não o terei. Às vezes acho que se um dia ela fosse embora - coisa que já duvido a essa altura dessa minha sobrevida - sentiria falta dela como sinto falta de ti. E só por isso nasceria uma nova dor.

Ah, como eu desejaria acordar novamente com você abrindo as cortinas e me chamando pra tomar água de coco na praia enquanto eu virava pro outro lado, me cobria com o edredon e te xingava por alguns minutos. Sinto falta dos dias sol. Do café. Do cheiro. Do cuidado. Do respeito. Do carinho. Sinto falta de todas as faltas que você me traz. Sinto falta das tuas curtas ausências. Da expectativa de te ver voltar. Hoje já não há mais esperança, nem expectativas. O que há é uma ausência real. A ausência que tem o cheiro dos dias de sol, um sabor de café sem açúcar e que se veste de cinza.

O que eu tenho agora é tanto nada que nem vale a pena. Pequenos fragmentos do que já vivi. Pequenos fragmentos de mim mesma, como uma alma que se agarra ao plano físico sem querer ascender a um outro mundo, me apego em tuas memórias. Minhas memórias que são tuas. Eu que sou um grande vazio, um grande buraco. 

E eu já nem sei mais... Nem sei mais o que motivou essa carta. Já não sei se queria te expurgar um pouco de dentro de mim e vomitar essas palavras pra não me sentir tão doente ou se pensava em sentir teu perfume nessas palavras. Nem sei mais se lembro de teu perfume. Minhas palavras cheiram mal. Minhas memórias cheiram mal. Filhas desse amor putrefato que não deixo descansar em paz. Eu já não descanso.

Olívia

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#59

Rio de Janeiro, 12 de outubro de 2010

Carlos,

Te escrevo hoje porque se aproxima o dia do mestre. Esse ano, ele cai numa sexta-feira. Feriado prolongado, eu (quase) sempre dava um jeito de fugir do trabalho e embarcar com você em algum tipo de aventura. Você sabe porque eu disse 'quase', não sabe? Você se lembra... Eu lembro.

Mas hoje, ao acordar, ouvi um burburinho de crianças entrando pela janela. Tentei entender se era sábado ou domingo e porque haveria de ter tantas crianças na rua a uma hora dessas. Mal sabia que horas eram, mas a essa altura da vida, qualquer hora é má hora para o som das crianças. Tentei olhar o calendário que fica na parede do banheiro, mas percebi que ele era de dois anos atrás. Não sei se foi o sono, mas fiquei um tempo pensando na possibilidade de tudo isso ser um sonho. De não ter, de fato, vivido os últimos dois anos. De ter adormecido na cama, e acordado meio atordoada depois de um pesadelo.

Corri para abrir os armários, procurei por suas roupas e, quando finalmente acordei, percebi que minhas próprias roupas estavam espalhadas pelo chão do quarto. De seu, só a minha dor. Não havia sequer uma camisa de dormir pra me lembrar teu cheiro. Deitei por cima das roupas. Quis dormir de novo, mas o burburinho havia aumentado.

Levantei, tomei um banho. Desses que a gente toma quando volta de cemitério. Como se a água pudesse afastar os maus espíritos e o sabão limpar minha alma. Durante o banho lembrei da última carta. Percebi que deveria ser perto de outubro e, pelo burburinho das crianças e as buzinas, só podia ser dia 12. Fiz uma coisa que não faço habitualmente. Liguei pra Alice. 

Conversei com ela por alguns minutos, mas não lembro bem sobre o que falamos. Sabe aquela sensação de que as palavras se perdem no vácuo?  Como se eu fosse incapaz de entender aquelas trivialidades. Ela me confirmou que hoje era dia das crianças e que pretendia ir com o Matheus a algum lugar, acho que a praia e inclusive me chamou pra ir. Recusei, claro. Precisava te escrever.

E te escrevo debruçada por cima de minhas roupas velhas. Roupas que vesti com você. Nesse momento, estou agarrada ao cachecol violeta que você me deu, quase como se ele guardasse seu cheiro por dentro dos fios de lã. Como sinto falta do teu cheiro. Como sinto falta de estar viva.

Olívia.

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#77

Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 2011

Carlos,

Eu gosto do seu nome. Vez por outra fico repetindo seu nome, de frente pro espelho, atenta aos meus lábios. Repito vagarosamente, quase saboreando cada movimento. Quando a boca se abre e se fecha em duas sílabas tão simples que formam um nome tão comum... Às vezes me pergunto como alguém de nome Carlos poderia descompassar minha vida e mudar a rotação do meu mundo. Como alguém de nome Carlos me fez parar em um pedaço de tempo, agarrada em uns poucos trapos velhos de espaço. Como alguém de nome Carlos tem o poder de me fazer enlouquecer.

Esses dias procurei o significado de seu nome. Lavrador. Não sei se é muito confiável, mas... vá lá. Lavrador. Esbocei um sorriso. Tentei repetir a palavra de frente pro espelho, mas parei e vi meus olhos. Fiquei um tempo olhando para os meus olhos. Você já fez isso? Era estranho olhar para o que me olha e ver o que vi. Meus olhos não são mais os mesmos. Cheguei a tocá-los para ter certeza de que eram mesmo meus, mas até agora ainda não tenho certeza. Não tenho certeza se esses olhos são meus ou se os olhos dos quais me lembro nunca  foram da forma como via.

Não sou mais bonita, Carlos. Nem quando falo seu nome. Nem quando falo vagarosamente o seu nome. Meus olhos ganharam um tom meio cinza e a pele em volta deles não tem mais o mesmo viço. Viço... Jamais pensei que escreveria essa palavra em uma carta, mas também, jamais pensei que pudesse escrever tantas cartas. Viço me lembra a minha avó. Cartas também me lembram dela. Não serei como ela, não tenho sua força.

Carlos, Carlos... o Natal está chegando. Não consigo deixar de lembrar de nossos Natais em família, em volta da árvore. Até as brigas do seu pai com o meu pai sobre futebol me deixam nostálgica. Daria qualquer coisa pra voltar àquele Natal em que você derramou o vinho no meu vestido branco e eu fiquei sem falar com você até o ano novo. Eu teria feito diferente. Acho que tenho me deixado contagiar com a melancolia das luzes de Natal. Não gosto de sair de casa nessa época. Se bem que, em que época gosto de sair de casa? Até as consultas que realizo na Estrada da Gávea toda quarta-feira me são exaustivas. Ainda não entendo porque as pessoas não respeitam o fato do mundo não fazer mais sentido pra mim. Se eu não tenho vontade de viver e se essa vontade se arrasta por anos, devo eu continuar vivendo? Chamaram-me egoísta, mas será que sou eu mesma a egoísta?

Essa época do ano me enjoa. E eu sinto vontade de dormir um sono profundo. Não gosto de encarar a piedade nos olhos dos outros. Mal consigo encarar meus próprios olhos. Olhos me desconcertam. E eu estou cansada.

Feliz Natal.

Olívia

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#17

São Paulo, 09 de maio de 2006

Carlos,

Você ainda está bravo comigo? Desculpa não poder estar aí para o nosso aniversário de namoro, eu sei que disse que estaria, mas as coisas ficaram complicadas por aqui. A campanha não foi aprovada, foi preciso fazer alguns ajustes e eu não teria tempo se voltasse para casa.

Eu vi que você me ligou, mas achei melhor não atender. A gente sempre briga nessas horas e, sinceramente não estou com cabeça para brigar. Eu só queria que você entendesse que, se estou trabalhando muito, é justamente pensando em nós dois. Eu te amo, você sabe disso, mas se você pudesse mudar um pouco... Você acha que eu não gostaria de pensar que tudo se acerta uma hora ou outra? Minha vida, no entanto, nunca foi assim, eu sempre tive de correr atrás de tudo o que eu quis e, se hoje eu cheguei onde estou, foi às custas de muito esforço. Não poderia largar tudo para viver uma fantasia.

E, não, isso não é falta de amor como você sempre diz, ao contrário. Eu realmente acredito que você logo enjoaria de mim se eu abrisse mão da minha vida pra viver a vida que você escolheu. Eu não estou sendo egoísta, você vive dizendo que eu deveria ceder mais, mas eu também acho que você deva ceder. Por que sempre tem de ser eu?

Eu sei que é difícil conciliar sonhos diferentes quando se vive a dois, mas acho que quando um abre mão de seus próprios sonhos para viver exclusivamente para o outro, ele abandona um pedaço de si e acaba se tornando outra pessoa. Não quero ser outra pessoa. Quero continuar sendo a pessoa que você conheceu, por quem se apaixonou. Quero ser a pessoa que te faz rir às seis da manhã quando te acorda e não uma esposa frustrada procurando receitas de salmão ao molho de maracujá na internet.

Hoje fazemos seis anos de namoro. Sim, deveríamos estar comemorando, mas eu não estar no Rio não é o fim do mundo. Te ofereci todas as alternativas possíveis. Pedi para você vir para São Paulo, mas você não quis... Sinceramente não sei mais o que fazer. Afinal, é só uma data. Não deveríamos comemorar todos os dias pelo simples fato de estarmos juntos? Não estou sendo canastrona ao afirmar isso, só pelo fato de, teoricamente, o erro ter sido meu. Eu penso mesmo assim. Sou grata todos os dias por te ter ao meu lado e não sei o que seria da minha vida sem você.

Eu te amo, acredite.

Olívia

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#31

Rio de Janeiro, 27 de setembro de 2009

Carlos,

Já passa das três da manhã e não consigo dormir. Estou tentando não abusar dos comprimidos, mesmo porque, quando os tomo, tenho que me abster do vinho... mas nessa noite, de insônia insistente, já tomei dois, com duas taças de vinho e continuo aqui.

Pensei em escrever pra ti. Às vezes sinto como se meu coração estivesse se afogando, imerso em sentimentos densos que não o permitem bater e bombear o sangue. Estou apática desde a sua partida. Acho que é essa a palavra. Lembro, como se fosse hoje, de você arrumando as malas enquanto eu estava sentada na cama, folheando uma revista dessas que tem mais fotos que textos. Sem achar que você seria capaz. Não lembrava quantas vezes havia presenciado a mesma cena: Você, dobrando suas roupas, colocando dentro de uma sacola de viagem. Nós dois mudos, esperando o momento em que começaríamos a chorar e faríamos as pazes na cama, como era de praxe.

Naquele dia, ninguém chorou. Talvez por ser uma noite de verão. Dias de verão não são muito melancólicas. Confesso que, enquanto você arrumava as malas, eu planejava a viagem para o fim de semana seguinte. Não chorei. Sabia que era mais uma guerra psicológica para saber quem cedia primeiro, quem demonstraria fraqueza e eu não fui fraca. Permaneci inerte, folheando a revista e até me interessei por um sapato, pensei que poderia usá-lo no final de semana. Cheguei a comprar o sapato enquanto conferia se havia uma ligação sua no dia seguinte. Nada.

As horas foram passando e não havia nenhuma ligação sua. Cheguei a ligar para mim mesma para saber se meu celular não estava com defeito. Desde que havia te conhecido, nunca passei um dia sem falar com você e, quando finalmente completou o ciclo das vinte e quatro horas, percebi que alguma coisa estava errada. Que era minha vez de dar o braço a torcer. Lembro que liguei para o seu celular algumas centenas de vezes, perdi a conta de quantas, sempre desligado. Liguei para sua casa, seus amigos, sua mãe... Ninguém sabia de você. A preocupação virou desespero e, quando dei por mim, entrei em estado de choque.

Não conseguia falar, comer, dormir, expressar qualquer reação... O telefone tocou lá pelas tantas e senti meu coração disparar, mas não era você. A Fátima queria saber como eu estava, mas eu não poderia falar, nem se eu quisesse. Há sentimentos que apenas o silêncio expressa, outros, no entanto, se confundem e se acumulam tanto que nos dão a nítida sensação de que se não falarmos, eles vão se tornar maiores que nós e, de repente, eu me vi gritando. Um grito visceral, seco, cru.

Nem preciso dizer que a Fátima chegou a minha casa em menos de dez minutos e ainda não entendo como ela fugiu do tráfego intenso da Rua Jardim Botânico àquela hora da tarde, mas ela acabou me levando ao hospital, não esbocei qualquer reação e dormi após uma injeção na veia de diazepan.

Acordar no dia seguinte foi doloroso. Continuava esperando ligações que nunca vinham até que, três dias depois, um e-mail seu com uma frase: estou bem, preciso de um tempo, não me procure.
Poderia dizer que fiquei mais tranquila ao saber que você estava bem, mas a verdade é que eu preferia que estivesses morto. Morto como eu estava, como ainda estou. Acordado às quatro da manhã para me escrever cartas. Cartas que gritam de saudades de ti.

Olívia

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#25

Montes Claros, 03 de setembro de 2008

Carlos,

Estava ansiosa por te escrever. Não estou no Rio, acho importante te avisar. Fico preocupada que tu me procures e não me encontres e fiques preocupado por qualquer motivo. Depois daquele incidente na universidade, minha irmã achou melhor me trazer pra cá e não me deixar mais dirigir. Como se eu fosse sair por aí atropelando as pessoas aleatoriamente. Estou no interior de Minas, em Montes Claros, na casa de uma tia. Não sei se você conhece a cidade, acho que não. Aqui consegue ser mais quente que o Rio. Quente e seco. Não acho que tenha sido uma boa ideia ter vindo. Com esse calor, sinto ainda mais dificuldade de respirar. A Alice diz que é psicológico.

Ela ficou aqui por alguns dias. Saímos, fomos até o clube, almoçamos por lá. A comida é boa. Comi carne. Nem lembro há quanto tempo não comia carne. Foi bom. Nos tempos em que ela esteve aqui, ainda saí para dar umas voltas, mas aqui faz muito calor. Muito calor. Não tenho mais vontade de sair.

Na verdade, tem dias em que me bate uma ansiedade... Meu coração dispara, minhas mãos começam a suar e eu tenho a nítida impressão de estar próxima da morte. Há tanto tempo quero te avisar que estou aqui, mas acho que Alice levou meu celular porque não o encontro em lugar algum. Tentei te ligar do telefone da casa, mas acho que fico meio confusa com os códigos de área e as operadoras de telefone. Alice me liga todos os dias, a noitinha. Às vezes só percebo que chegou a noite quando o telefone toca e tia Amélia me chama.

A tia Amélia é muito simpática comigo, mas, às vezes, posso jurar que há um vislumbre de piedade em seus profundos olhos azuis.Eu não entendo bem. Ela tenta fazer todas as minhas vontades, mas ela não entende que não tenho mais tantas vontades. Queria te escrever, mas não encontrava papel na casa. Não é estranho? Uma casa sem papel. Não há computadores. Já esperava por isso, afinal, tia Amélia não é do tipo que vive conectada, mas não ter papel... Por que diabos não haveria um papel em uma casa?

Ela faz pão de queijo todas as tardes. Pão de queijo em Minas é tão clichê, não é? Mas eu como, pão de queijo com café. Tenho medo de engordar, apesar de minha tia dizer que preciso, mas sabe como é essas pessoas mais antigas, seus padrões são estranhos. Ela diz que estou muito magra, mas, apesar de minhas roupas estarem largas, não acho que estou magra. Tenho medo de engordar muito e, quando voltar, você não gostar mais de mim. Apesar de você ter dito que me amaria de qualquer forma, não quero abusar, ainda mais no meio dessa crise pela qual estamos passando.

Não sei o número daqui, senão te mandaria pra você me ligar. A Alice acha que não devo me preocupar com isso, que você vai ficar bem, mas não consigo me preocupar sem saber como você está. Devo voltar logo para o Rio. Não vou aguentar ficar aqui por muito tempo. Aqui é muito quente. Eu já disse isso, não disse?

Espero que esteja bem.

Olívia.

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#98


Rio de Janeiro, 20 de maio de 2012

Oi, Carlos,

Estou escrevendo porque hoje eu te vi. Juro que vi. Não foi como das outras vezes que achei que tivesse te visto, mas eram só os outros rostos. Não estou mais na fase de querer te ver em qualquer homem. Quase nem sinto tua falta. Não fossem as noites de outono ou as tardes de verão, mal me lembraria de ti.

Mas eu te vi. Sentado em um banco em Copacabana, na altura da Santa Clara, de costas para o mar. Tua bicicleta estava do lado e você parecia falar ao celular. Eu estava do outro lado da rua, mas te reconheci. Teus cabelos estão mais brancos, tua barriga mais saliente, mas ainda lembro do teu peito. Eu nunca esqueceria os pelos do teu peito.

Fiquei ali, do outro lado da rua, te olhando por longos minutos, mas não saberia dizer quantos. Sei que escurecia, mas não era noite. Acho que as nuvens encobriram o sol por alguns momentos. E você ali, sentado, falando ao telefone... Uma cena tão comum e tão fascinante aos meus olhos. 

Confesso que não soube o que sentir quando te vi. Em alguns momentos, queria que você percebesse minha presença, largasse o celular, a bicicleta, atravessasse a Avenida Atlântica como quem tem urgência, me tomasse nos braços e me sufocasse com um beijo intenso e lento misturado com lágrimas de nunca te esqueci. Ao final do beijo, me daria um abraço daqueles em que se sente cada osso do corpo, perderia a fala por alguns momentos e eu poderia sentir o teu cheiro, o cheiro que dorme em minhas narinas. Durante o abraço, eu ouviria teu coração dizer meu nome e não seriam preciso palavras pra demonstrar que eu sou o grande amor da tua vida. Em outros momentos, no entanto, tinha medo que me visse. Sentia meu coração acelerar ao pensar que você poderia me ver, ir em minha direção, gritar comigo, dizer para que eu te deixe em paz, te deixe seguir com tua vida, que eu preciso de um tratamento... Todas aquelas coisas que você já cansou de repetir, anos atrás. Ou pior, notar a minha presença, subir na bicicleta e sumir dali. Como se eu não fosse mais importante. Como se eu já não existisse.

Você não me viu. Tenho certeza que não viu. Terminou sua conversa ao celular e quase senti inveja da pessoa que falava contigo sobre um assunto que eu nem sei qual é. Poderia ser a outra que hoje partilha sua cama, discutindo sobre o que você queria para o jantar. Poderia ser tua mãe, te cobrando uma visita que você sempre posterga. Poderia ser alguém do trabalho falando sobre a escala de férias... Queria poder ouvir tua voz uma vez mais. Teu suspiro, tão característico.

Você não me viu. Desligou o telefone, subiu na bicicleta e seguiu em direção ao Leme. Continuei parada, te vendo partir, de novo. De repente percebi que eu não estava mais ali, parada, naquele lugar. Milhares de cacos de mim estavam pela rua, sendo levados pelo vento. Tratei de lembrar que não lembro mais de ti. Que não sinto mais tua falta. Voltei a sentir meu corpo, mas posso jurar que alguns cacos se perderam. Talvez tenham sido levados a praia. Talvez alguns tenham te seguido até o teu novo lar e nesse momento, estejam repousados em teu peito, inseridos tão perfeitamente em tua pele que não sairão mais. Talvez eu nunca mais seja inteira.

Olívia.

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#23

Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2008

Carlos,

Estou tentando te ligar desde ontem a noite, mas você não me atende. Entendo que esteja chateado comigo, sinceramente não sei o que me deu para ter uma atitude daquelas. Você não merece ser exposto daquela forma, nós não merecemos.

Precisava te escrever essa carta pra te dizer como me sinto e para que, se for possível, tu me perdoes pela atitude impensada. 

Há meses não tenho noticias tuas. E não é de hoje que tento conversar contigo para esclarecer a nossa situação. Sinto que ainda me amas, afinal, um amor assim como o nosso não pode terminar de uma forma tão definitiva, como uma folha que se desprende da árvore e é levada pelo vento para longe dos olhos. Ando preocupada, sem conseguir me concentrar em nada ao redor. Por vezes deito e tardo a dormir, quando vejo, o sol anuncia a manhã com os primeiros raios quentes que me cegam quando ainda estou na cama pensando em ti. Quero saber se andas te alimentando, tomando teus remédios, indo ao médico regularmente, cumprindo teus horários. Preciso saber se andas falando com teus amigos, se ainda falas em mim, se ainda pensas em mim, se ainda sou alguém na tua vida.

Como disse, eu sei que nada justifica o que fiz ontem, mas como diz o poema do Oswaldo Montenegro, "Que a minha loucura seja perdoada, porque metade de mim é amor e a outra metade também". Tu sabes o quanto eu te amo e como tem sido difícil passar os dias sem ouvir tua voz. Me desacostumei da vida sem você e agora, é como se eu não soubesse como andar, como se eu falasse uma língua que as outras pessoas não entendem, como se eu vivesse em uma realidade que não é a minha.

Como tu pensas que pode existir vida sem nós dois se desde que nos vimos pela primeira vez que já não imagino o próximo passo sem que ele seja a teu lado? Como tu pensas que devo voltar aos meus afazeres normais se até quando corto uma cebola pra temperar o macarrão que tu tanto gostavas, lembro de momentos que nunca mais voltarão a ser meus? Como tu pensas que eu poderia manter o controle de pensar que essa tua boca que é minha poderia beijar outra boca ou tua mão acariciar um corpo que não é o meu? Como podes me imaginar dissociada de ti? Como se não fossemos um. Não lembras mais de tuas promessas? Como ousas quebrar a promessa de amor eterno, pactuada nas noites em que passamos juntos nos amando como se não houvesse amanhã?

Se fiz o que fiz, a culpa também é tua e queria que percebesses isso. Mas tu não entendes. Ninguém entende que, se hoje estou nessa situação, a culpa também é tua!

Mas venho aqui para te pedir desculpas, para que não aches que estou louca. Não estou louca, apenas amo loucamente. Amo como se só para o amor nascesse. Amo. Amo. Amo. Amo como nunca amei. Amo como quem nunca mais vai amar ou como pra sempre vai te amar. Amo. Amo. Amo. Entendas isso.Que a minha loucura provem desse amor que tu renegas, desse amor que tu te afastas, desse amor que é tão intenso que mal me permite respirar. Por favor, entenda que eu preciso respirar o teu ar para continuar vivendo.

Pra sempre tua,

Olívia

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#49

Rio de Janeiro, 14 de março de 2010

Carlos,

Ontem foi seu aniversário. Não pense que esqueci. Eu nunca esqueço. Só estive indisposta e não pude me levantar da cama para te escrever. Pensei em te ligar, mas lembrei que você disse para não nos falarmos mais ao telefone, que não te fazia bem e, longe de mim te fazer mal logo no dia do seu aniversário.

Mesmo na cama, pensei o dia todo em você. O que estaria fazendo nesse dia que sempre foi tão importante para nós dois? Lembrei do seu aniversário de 38 anos em que fomos para um chalé em Itaipava. Lembra de como choveu? Passamos muito tempo trancados no quarto, bebendo vinho, ouvindo o crepitar da lareira... Vinícius tocando na nossa antiga vitrola. Dormimos aninhados no tapete de pele de carneiro, envoltos em vários edredons.

Lembro de você me acordando no meio da noite, beijando meu pescoço, sua mão quente tocando meu corpo, da respiração sôfrega, dos arrepios, dos espasmos... Lembro de ter deixado cair o resto de vinho das taças em nossas roupas que já estavam jogadas no lado direito, próximas do pé da cama. Do seu hálito rascante como o vinho que bebemos e da sua barba mal feita que arrepiavam os pelos da minha nuca quando passavam pelas minhas coxas. Lembro do seu gosto de mar, de mel, de fel, do seu gosto de meu.

Do tempo em que passamos suados apenas olhando as fendas da madeira do teto. Era impressionante a nossa comunicação não verbal. Tantos casais passam tanto tempo discutindo e nunca chegam a qualquer conclusão, nós nos entendíamos com um olhar, um toque ou mesmo pela intensidade da respiração. Nos entendíamos como se fossemos um. Como se sempre fossemos só nós dois, completando nossas frases ou verbalizando pensamentos um do outro.

Não foi só a minha alma que sentiu falta da sua, ontem. Senti falta do teu corpo, do teu peito, da forma como teu abraço me engolia. Do cheiro forte do teu suor, dos teus cabelos pretos que já iam ganhando aquele degradê prateado e te davam um ar de homem feito que quase entrava em contraste com teus olhos  castanhos, quase amarelados que revelavam o menino cheio de esperanças e ilusões que você era. 

Ontem, mais que de você, senti falta do amor. Desses amores que enchem os dias de vida e a vida de sentido. Senti falta de mim mesma. Das longas conversas que só faziam sentido pra nós dois, das idas ao cinema para assistir filmes europeus, do café forte que tomávamos nas manhãs de domingo. Senti falta das manhãs de domingo. Quem mais sente falta das manhãs de domingo?

Feliz aniversário,

Olívia

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#68

Rio de Janeiro, 17 de julho de 2011

Oi, Carlos,

Estou escrevendo pra dizer que ainda não estou em casa, mas estou bem. Confesso que estava receosa de vir para esse lugar, mas aqui é agradável, tem muito verde, aquele cheiro de terra molhada, sabe? e me sinto até melhor. A Alice contou que você ligou, que estava preocupado... E eu achando que você nem lembrava de mim. Só não entendo o porquê de você ter ligado pra ela e não pra mim.

Ao contrário do que você possa pensar, não fiz isso para chamar sua atenção. Não vejo a vida como algo tão sagrado assim. Há tempos deixei de acreditar em qualquer força superior, qualquer Deus, que seja. Acredito que devemos viver enquanto há um motivo pra isso e, sinceramente, não vejo mais motivo na minha existência. Tenho conversado com algumas pessoas daqui que insistem em dizer que esse é um pensamento depressivo, mas não acredito que seja. Acredito que todos estão vivendo de uma forma tão alienada que não percebem o quão vazia e dispensável é sua própria vida. Tenho vivido para as cartas... As cartas que te escrevo. Escrevo porque sei que tu me entendes, mesmo sem nunca me responder.

Não é fácil ver a vida dessa forma, eu sei.. Voltaire já dizia que se Deus não existisse, precisaria ser inventado (ou qualquer coisa desse gênero). As pessoas normais precisam de esperança. Acordar todos os dias, repetir as mesmas ações... Dormir para acordar, acordar para dormir e achar que há algum sentido oculto. Estou farta. Não há sentidos ocultos, tu sabes bem. Quero adormecer em um sono profundo e sem sonhos. Meus sonhos não são mais os mesmos e perturbam minhas noites. 

E sabe como eu pensei nisso? Fátima me ligou esses dias. Disse que eu deveria sair, encontrar alguma coisa para ocupar meus dias, mandou eu pensar em qualquer coisa que gosto e eu respondi que gosto de escrever as cartas. Ela disse que isso não basta para uma vida. Quando desliguei, fiquei pensando: Se a única coisa que gosto de fazer não basta... Prefiro adormecer em um sono profundo, envolta em memórias de um passado tão remoto que quase me fazem acreditar em outra vida. Não é possível que eu tenha vivido todas essas memórias... E qualquer cheiro, música ou data, qualquer mínima coisa que as fazem ressurgir de algum canto obscuro e empoeirado de meu cérebro, tentando iluminar com cores vivas e vibrantes esses meus dias cinzas, me causam náusea. Essas cores me cegam, me enjoam. O som das gargalhadas ecoam em meus ouvidos. Tento pará-los, mas é tão difícil...

Talvez os comprimidos que tomei a mais tenha sido uma forma de tentar parar essas memórias. Alias, pra que temos memória? Talvez eu conseguisse ter esperança se não tivesse todas essas memórias que dançam na frente de meus olhos e me mostram que o clímax da minha história já aconteceu.Que agora eu devo encontrar alguma ocupação para matar o tempo enquanto o tempo me mata. Não quero depender do tempo para isso. O tempo... Algumas pessoas superestimam o poder dele. Sempre me disseram que o tempo faria tudo passar, mas não faz. O tempo não cicatrizou minhas feridas. Minha ferida continua aberta, sangrando, pulsante, latejante.  Minha ferida continua tão escancarada que faz com que as outras pessoas tenham pena ao olhar pra mim. 

Você acha mesmo que eu mereço vivendo uma vida medíocre, despertando piedade, se eu posso dormir e deixar nossas memórias?

Olívia

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#8



Rio de Janeiro, 10 de maio de 2004


Amor!

Adorei a surpresa! Sabia que você não esqueceria. A noite de ontem foi fantástica. Obrigada pelas flores e pelo jantar. Como você disse que adora receber cartas minhas, resolvi escrever uma pra dizer o quanto estou feliz por ter você na minha vida.

Ainda me impressiona a forma como tudo aconteceu: tão rápido, tão intenso e tão profundo. Apesar do tempo que já estamos juntos, meu sentimento por você só aumenta. Todas as noites em que você não está aqui, eu me agarro ao travesseiro e adormeço pensando em você. Tenho certeza que posso sentir o seu cheiro, quase como se estivesse impregnado nos meus poros.
Sinto como se o meu corpo e o seu se confundissem, se fundissem, não sei... Mas é como se eu fosse capaz de sentir o seu toque mesmo quando está longe. Brega, não é? Mas, como diria o Pessoa,"Todas as cartas de amor são. Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem"Então, como essa carta é cheia de amor, tem que ser o mais ridícula possível.

Eu sei que nós temos nossos momentos de tempestade, momentos em que parece que nada mais faz sentido, que nosso amor não vale mais a pena. Sei o quanto sou intolerante em determinados momentos, mas, nessas horas, lembro de nossos bons momentos. Do quanto é bom ligar e ouvir sua voz. Do quanto me acalma o teu abraço. Gosto de me aninhar em teus braços e sentir que nada no mundo pode me atingir ou afetar. Sinto como se você fosse meu porto seguro. Quem está comigo quando tudo dá errado. Então, por mais discussões que tivermos – e que casal não as tem – eu quero poder sempre voltar pra você, meu equilíbrio.

Então, hoje, um dia depois de termos completado 4 anos que nos encontramos – e nos reconhecemos – eu só tenho a agradecer a Deus por ter trazido você e a você por dar sentido aos meus dias, por me dar a paz que eu preciso ao acordar e saber que preciso enfrentar mais um dia, mas saber que eu posso voltar pra casa, tomar um banho quente e ouvir o vinil do João Gilberto com você na nossa vitrola. Que outro casal tem uma vitrola nos dias de hoje?! Que outra pessoa pode dizer que encontrou a pessoa certa para partilhar cada momento, grande ou mínimo? Não importa se temos vitórias ou pequenas derrotas, sinto que podemos enfrentar o mundo juntos, de mãos dadas. Trilhamos nosso próprio caminho, com nossas verdades únicas e, com elas, criamos um mundo especial em que podemos nos refugiar.

Você é e sempre será o grande amor da minha vida.

Eu vivo por você e pra você.

Sempre sua,
Olívia

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#39


Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 2009
Olá, Carlos!

Tem recebido as minhas cartas? Não recebo respostas suas.

O ano está terminando. Apesar de tudo, acho que 2009 foi um bom ano. Gosto de anos ímpares. Lembrei agora da sua fascinação pelo número 36. Não sei o porquê, só lembrei.  Passei o Natal em casa. Nunca gostei de Natal, daquelas reuniões familiares. Um das minhas irmãs me ligou, queria que fosse até Curitiba, mas eu não quis. Prefiro ficar aqui, tomando um corton-charlemagne. Passei a me interessar mais por vinhos. Sempre gostei, você sabe.

A Fátima me ligou esses dias, disse que eu devia voltar à terapia. A terapia não funciona bem comigo, como te disse. Não me agrada contar minha vida a uma pessoa que sequer conheço e que recebe para ouvir meus problemas. De qualquer forma, ela me contou que você encontrou um novo amor e, inclusive está planejando ter filhos. Filhos! Veja só! Você que nunca gostou de crianças. Como as coisas mudam, não?
Não consigo te imaginar ainda com outra família, pegando o carro, levando as crianças para o colégio, indo a praia no fim de semana e viajando pra Disney nas férias. Não combina com a imagem que tenho de você, sempre ocupado, lendo seus livros, ouvindo seus discos e fumando seu charuto. Será que parou de fumar charutos? Acho que não combina com essa nova imagem de pai de família. Imagem que criei, é verdade.

Fico pensando que minha vida é uma realidade inventada. Tem um trecho que um livro da Clarice que diz assim: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.” De que livro era mesmo? Água viva? Deve ser... Há tanto não leio Clarice... Mas, como dizia, vivo em uma realidade inventada. Meus pensamentos criam histórias e situações e por vezes nem sei o que foi ou não real. Não é estranho?

Esses dias mesmo liguei pra Alice pra saber como estava o meu sobrinho, o Matheus. Lembra do Matheus? Pois então, eu tinha certeza que ele tinha ficado reprovado na escola e que ela mesma tinha me dito isso. Lembrava com detalhes da ligação, mas ela garantiu que nunca havia me dito que ele ficou reprovado, mas apenas que estava tendo dificuldades com o português. Que ele estava bem, já indo para o quarto ano – não me pergunte o que significa isso, na minha época essas nomenclaturas eram diferentes.

Me senti velha agora, depois de dizer ‘na minha época’. Talvez eu esteja velha. Já reparou que as pessoas não envelhecem ao mesmo tempo? Nesses dias a Alice mesmo veio me visitar. Aquelas reclamações de sempre de que eu devia sair e recontratar a empregada e eu percebi que o tempo estava sendo mais suave com ela. Como se ela estivesse envelhecendo mais lentamente. Você também deve estar envelhecendo mais lentamente.

Ah, feliz ano novo!

Olívia

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#52

Rio de Janeiro, 27 de abril de 2010

Carlos,

Hoje me lembrei de você, mais uma vez. Sai de casa e enquanto fechava a porta olhei para o apartamento, quase que de soslaio percebi que a porta do banheiro estava aberta e a toalha pendurada. Eu detestava aquela toalha pendurada que sempre caía quando eu fechava a porta e você ignorava meus protestos e seguia lendo alguma revista, deitado na cama.

Enquanto girava a chave na fechadura, pude me lembrar da forma como você se deitava para ler: uma mão segurando a revista, outra por baixo da cabeça e a perna esquerda levemente dobrada.

Mas, como dizia... Hoje saí. Me atrevi a dar uma volta pela praia, pra olhar o mar. Dizem que é bom, não dizem? Nunca tive muita paciência para passar longos períodos, parada, contemplando o que quer que seja. Ah, a contemplação não era pra mim. Preferia o barulho ao silêncio, falar a ouvir. Você sabe bem (sim, eu sempre parto do pressuposto de que você ainda se lembra dos meus trejeitos e, às vezes, até fantasio que sinta falta de alguns). Desculpa interromper a narrativa com minhas próprias lembranças ou impressões, mas percebo que, nesse ponto, escrevo mais pra mim que pra você.

Enquanto eu caminhava pelas ruas de Copacabana – e não me pergunte por que escolhi Copacabana – eu percebi o barulho, talvez pela primeira vez. Estive, por tanto tempo, acostumada a essa movimentação, com o barulho que as pessoas fazem ao caminhar, com as conversas em voz alta ao telefone, o motor dos carros... Eu percebi que elas não conseguiam ouvir o barulho que vinha de mim. Fiquei pensando se não sou só eu que ouço o som dos meus cacos batendo. Não que eu quisesse que outras pessoas ouvissem, ao contrário. Senti, inclusive, certa paz de espírito ao perceber que ninguém se importava com minha própria dor.

Confesso que olhava para os rostos das pessoas, com seus sorrisos superficiais, sua pressa habitual e ficava tentando ouvir o som de seus próprios cacos batendo. Era quase uma solidão compartilhada. Talvez eu tenha me mantido reclusa por tanto tempo por pensar que a minha falta estivesse estampada em meu rosto, como uma marca, uma cicatriz que me distinguisse dos demais. Era só ego...

Quase me esqueci da praia olhando as pessoas. Observá-las ainda é melhor que interagir. Ainda não tenho coragem (ou seria vontade?) de interagir. Talvez, a partir de hoje, da primeira parede quebrada, eu consiga quebrar outras, talvez não... Talvez seja só como o sol tímido da manhã chuvosa que volta a se esconder por trás das nuvens.

Há tempos não tenho notícias suas. Espero que estejas bem.

Um abraço,

Olívia

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